sábado, 2 de fevereiro de 2013

O melhor conselho que já recebi

Quando eu estava com 11 anos, tinha aulas de violino com Georges Enesco em seu estúdio em Paris. Um dia, o homem robusto e grande, com um rosto austero e gentil, olhou-me sobre o violino que segurava embaixo do queixo e sacudiu o arco. "Para tocar música maravilhosa de verdade", disse, "você deve manter os olhos fixos numa estrela distante."
Na época, eu achei que isso significava simplesmente: Dê o melhor de si em qualquer coisa que estiver tocando. Conforme fui crescendo, no entanto, descobri que as palavras de Enesco significavam muito mais. Elas já me ajudaram várias vezes desde então, e não apenas em minha carreira musical.
Uma noite, durante a 2ª Guerra Mundial, eu estava num hospital improvisado, esperando para tocar para cerca de 40 soldados feridos que não viam uma apresentação "ao vivo" havia dois anos. Quando meu acompanhante se sentou no maltratado piano, descobriu que, das teclas do velho instrumento, metade não estava funcionando. Nós tentamos tocar um dos movimentos de sonata, mas não pudemos prosseguir.
Isso me deixou numa situação complicada. O violino não é normalmente um instrumento com o qual se possam executar solos- ele precisa de um acompanhamento que faça harmonia. O programa que havíamos combinado tocar, composto de melodias ciganas e peças leves, ia ficar incrivelmente fraco e sem graça só com o violino.
Algo dentro de mim disse: Toque Bach. Apenas Bach escreveu música que contém sua própria harmonia e contraponto. Mas Bach também é difícil de compreender, e o meu propósito em ir àquele local remoto era proporcionar prazer aos feridos. Qualquer organizador de eventos argumentaria que uma noite inteira de Bach dificilmente seria o programa ideal para soldados com saudades de casa.
Naquele momento, o conselho de Enesco- "manter os olhos fixos numa estrela distante"- surgiu em minha mente. A estrela distante agora era a fé em que a música na qual eu acreditava ia alimentar o espírito de qualquer ser humano, não apenas da elite culta. E toquei Bach. Aqueles homens solitários estavam muito mais preparados para essa música nobre e pura do que uma plateia sofisticada e urbana. A música, de maneira mais profunda e direta do que as palavras, falava de dor e sofrimento, mas também de calma e equilíbrio. Nunca tive uma plateia que tenha gostado  tanto do que viu, nem que tenha ficado mais comovida.
A intensidade do silêncio enquanto eles ouviam e o clamor de aprovação quando concluí me mostraram que o conselho de Enesco realmente me serviria bem.
Certa vez as palavras dele me apoiaram quando quase todos, ao que parecia, estavam contra mim. Imediatamente após a guerra, eu aceitei um convite do alto-comissário americano na Alemanha para tocar em Berlim. Judeus de Nova York a Israel ficaram indignados. Eles me condenaram por concordar em fazer uma apresentação num país onde o meu povo havia sido tratado de maneira tão chocante. (Eu sabia exatamente o quão horrível tinha sido, pois acabara de passar diversas semanas em campos de refugiados, tocando para sobreviventes de Buchenwald e Bensen, que me haviam contado suas histórias.)
Sofri bastante por causa das críticas. Mas achei que me deixar vencer pela amargura seria falhar num objetivo mais distante: aproximar  judeus e cristãos. Naquela noite, em Berlim, eu falei para a plateia: "O ódio causou a exterminação de judeus. Mas combater ódio com ódio é uma futilidade. Esta noite eu espero que nós possamos começar a aprender uns aos outros através da música que todos amamos."
O programa foi muito aplaudido. E durante vários dias recebi cartas como essa: "Quando ouvi você, um judeu, tocando Beethoven como nós alemães sabemos que deveria ser tocado, fiquei envergonhado do que deixamos acontecer." Eu me senti grato mais uma vez ao conselho de Enesco, por me apoiar numa das crises mais difíceis da minha carreira.
Você não precisa ser músico para se valer da sabedoria do meu professor. Eu senti a verdade dessa afirmação quando visitei o Instituto Rockefeller. Ali, um cientista trabalhava com tranquila absorção desenvolvendo antibióticos, outro investigava uma possível cura para a tuberculose, um terceiro estudava os efeitos do excesso de açúcar no sangue. Eles eram tão dedicados quanto monges num monastério do século 14, mas sentiam-se realizados porque seus olhos estavam na estrela.
Qualquer um que levanta seu olhar para aquilo que torna seu trabalho algo maior do que ele próprio sabe exatamente do que estou falando. Certa vez, quando eu passava pela cozinha de um restaurante, parei para olhar a máquina de lavar louça. "Esse é o trabalho mais importante aqui", explicou o homem que a operava. "Se nós não limparmos bem a louça e não mantivermos a água quente o suficiente para matar todos os germes, as pessoas podem ficar doentes."
Ele mantinha seu olhos na estrela.


Yehudi Menuhin, que morreu em 1999 aos 82 anos, foi um dos maiores violinistas do século 20.
Ativista de causas educacionais e humanitárias, em 1960 recebeu o Prêmio Jawaharlal Nehru por Compreensão Internacional. Ele ajudou a promover a ioga e a música clássica indiana no Ocidente.



Esse texto serve para informar que a música não tem fronteiras.

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